sexta-feira, 9 de junho de 2017

OS "DESINVISÍVEIS" QUE INCOMODAM




Escrevi este texto em 2015, para uma coluna de jornal que eu assinava. O motivo de retornar a ele agora foi a polêmica que está rolando em torno da agressão sofrida por um dos atores da peça “Certos Rapazes”, em cartaz aqui em Beagá. Sobre a peça falarei depois, e isso é uma promessa, porque gostei muito e desde a estreia venho enrolando pra escrever.
A polêmica: Um dos atores, que interpreta um dos parceiros no casal gay em cena, foi agredido por amigos, conhecidos, vizinhos - algo assim - em um jogo de futebol que participava perto da sua casa. Fez post no Facebook, rendeu pra imprensa e surgiram diversos comentários, a maioria de apoio ao cara (felizmente).
O que me chamou a atenção foi o tanto de gente que viu nisso um retrocesso. Retrocesso do que? Quando, em que tempo, a homofobia foi diferente, principalmente “menor” do que é hoje? Esse preconceito histórico está aí bem antes do politicamente correto da “aceitação”, que levou muito homofóbico pro armário em nome do discurso cabeça boa. Agora, um esforço não muito grande de memória, ou de história, pode conduzir quem está surpreso com o retrocesso para ali mesmo, pertinho, nos anos 80, 70, 60, até mesmo 90.
Ah, o preconceito era menor. Era? Onde? Na sua casa, onde ser gay era tabu e a palavra nem mesmo podia ser dita? Na sua comunidade, onde qualquer distração no trejeito de mão era motivo de chacota e de negação (necessária) caso a pessoa não quisesse de imediato ser atirada ao gueto da discriminação agressiva e “legalizada”, no sentido de que, diferentemente de hoje, ninguém achava nada demais discriminar gays. pelo contrário, isso era uma coisa bem legal de fazer?
Como um adendo, o ator esclareceu que ele não é gay, gay é o personagem da peça, e que foi discriminado e agredido por conta dessa confusão. Na levada, muita gente, querendo ser gente boa, escorrega ao ver nisso o drama. Quer dizer, fosse o cara gay, tava de boa, mas que isso, agora vão começar a agredir hetero por homofobia? Aí não, que já é demais. Tudo bem, o ator obviamente é gayfriendly e não partiu dele nenhuma intenção de se justificar pela negação. A dica aqui é para os comentaristas de plantão, que talvez não observem em suas posições o tanto de preconceito velado existente.
Como a introdução já virou textão, vou dar uma editada no que eu falei sobre os “desinvisíveis” na tal coluna do jornal. A ideia de usar o texto foi apenas pra contextualizar que não, não há nenhum retrocesso, a homofobia está onde sempre, infelizmente, esteve. O que acontece agora é que cada mais mais gays se tornam visíveis e, com isso, também se tornam bem mais visíveis as manifestações do preconceito.
O texto de 2015:
“Toda relação é um presente”, disse a Natura em comercial de 2013, utilizando música do Marcelo Jeneci em um vídeo bem emocionante, onde contemplava os mais diversos tipos de relacionamento, incluindo, claro, os homoafetivos. Teve choro e ranger de dentes? Bem provável que sim, mas não me lembro de ter sido algo que chamasse tanta atenção.
O bombom Sonho de Valsa, já em 2015, também lançou um filminho, este bem mais ousado, incluindo quase todas as modalidades de casais possíveis. Tinha lésbica beijando? Tinha, assim como tinha velhos, gente com grande diferença de idade, cadeirantes, casais interraciais, etc. Outro que eu não to lembrando de nenhuma movimentação contra.
Aí vem o Boticário... Não, eu não estava procurando água em Marte e cheguei atrasado ao assunto não. To sabendo que esse troço já rendeu às pencas desde a semana passada. Mas, como falei de invisibilidade na última terça, achei que era um bom motivo pra falar de uma variação do mesmo tema, a “desinvisibilidade”.
Então, como todo mundo sabe, o Boticário também usou casais homoafetivos em sua peça de divulgação para o Dia dos Namorados. Embora o vídeo seja dos mais bem comportados do mundo, pra muita gente a casa veio abaixo justamente com ele.
Em todos os três casos citados, e em mais um monte de propagandas, novelas e filmes que já fizeram ou que certamente ainda farão nessa linha, existe uma coisa em comum. Nenhum dos casais ali presentes foi inventado. É tudo coisa que existe, e existe há muito tempo, não começou agora. A diferença está justamente na visibilidade, que antes não era dada ao que fosse considerado “diferente”.
Algumas pessoas, sobretudo mais jovens, que não viveram outras épocas, costumam falar de certa “regressão” em questões de intolerância. Não gente, não é que havia mais tolerância antes, o que havia era invisibilidade, e o que não é visto não tem como incomodar, né? Saber que existia todo mundo sempre soube, mas a vista grossa é a mãe da hipocrisia. Então faz assim, você finge que não existe e eu finjo não me incomodar com você. O diretor do filme do Boticário, Heitor Dhalia, tem um palpite que talvez seja a chave pra desvendar o porquê da ira despertada justamente pelo seu comercial, tão bem comportado: “(...) na essência talvez seja por mostrarmos casais homossexuais de forma tão natural, sem associar a um gueto underground. Quase como um encontro de comédia romântica.”  

O fato é que, mesmo com todos os contras, os “desinvisíveis” podem se considerar vitoriosos. Os “a favor” superam em número, argumentação e bom humor, haja vista a quantidade de piadas criadas em torno do pensamento tacanho daqueles que tentaram, de alguma forma, desacreditar a ideia contida na publicidade - “consideramos justa toda forma de amor”. Isso sem contar o mico da sugestão de boicotar a perfumaria. Caso houvesse coerência nesta proposta, os adeptos seriam atirados de imediato ao tempo das cavernas, uma vez que praticamente todas as empresas e prestadoras de serviço que contam no mundo de hoje são pró direitos LGBT.

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